A Febre Amarela e seus paradoxos

Não resta dúvida de que a Febre Amarela é a “epidemia da vez”. Esquecemos Zika, Chikungunya e Influenza, e nos unimos em um pânico generalizado. A população, insegura, sente-se como se tivesse voltado ao século XIX. Mais uma doença das quais falavam nossos avós e que, acreditávamos, não se aproximaria novamente. E está aí, rondando a Grande São Paulo...


É de fato uma situação preocupante. Se por um lado grande parte dos casos de Febre Amarela tem sintomas leves e inespecíficos, aqueles 20-30% que procuram atenção médica frequentemente evoluem de forma grave. (1) Desafiando toda nossa tecnologia de suporte de vida, muitos destes tem desfecho fatal. As mortes são particularmente desconcertantes, se levarmos em conta que se trata de uma doença prevenível pela vacinação. (2)


No entanto, para termos uma visão ampla do panorama da Febre Amarela no Brasil (e no estado de São Paulo em particular) precisamos levar em conta alguns aspectos relevantes de sua epidemiologia e medidas de controle.
 
Em primeiro lugar, a evidência corrente é de que ainda temos no país apenas o ciclo silvestre (transmissão de primatas a humanos, mediada por vetores dos gêneros Haemagogus Sabethes). Os últimos casos adquiridos no ciclo urbano (transmissão entre humanos tendo como vetor o Aedes aegypti) foram relatados em 1942. Por essa razão, a Febre Amarela foi por nas décadas passadas uma doença ligada a migrações para áreas de risco e atividades como pesca e ecoturismo. Naquele período, a região de vulnerabilidade para a doença incluía a Amazônia Legal, o Centro-Oeste e o Oeste dos Estados de Minas Gerais e São Paulo. Desde 2008, porém, houve uma expansão da doença para Sul e Leste, com progressiva aproximação dos grandes contingentes populacionais não imunizados. (3) Além disso, constatou-se a proximidade entre humanos e primatas, estes últimos cada vez mais comuns nas periferias urbanas, parques, praças e até em condomínios.


 
Os casos humanos têm sido precedidos pela mortalidade de primatas, em fenômenos conhecidos como “epizootias”. Assim, os sistemas de Vigilância Epidemiológica (em nível nacional e nos Estados) passaram a monitorar essas mortes, sempre que possível confirmando laboratorialmente a presença do vírus amarílico. (4) A vigilância atingiu tal ponto de sensibilidade que até rumores sobre primatas mortos tem sido objeto de monitorização. Esses eventos têm funcionado como “gatilhos” para iniciar ou intensificar a vacinação em populações do entorno.
 
Existe uma vacina com eficácia próxima de 100% e efeito duradouro. Então, por que não vacinar toda a população brasileira? Esta tem sido uma fala comum em meios de comunicação que enfatizam suposta “negligência” das autoridades de saúde no país. Há, no entanto, um empecilho. Eventos adversos graves da vacinaçã(em especial a “doença viscerotrópica”, com quadro clínico semelhante ao da própria Febre Amarela) tem sido registrados em frequência que oscila entre 1:2.000.000 e 1:200.000 doses aplicadas. (5) É um risco pequeno para decisão individual de vacinar, mas o que dizer de uma campanha que tem como alvo os 20 milhões de habitantes da Região Metropolitana de São Paulo?


 
O Boletim do Centro de Vigilância Epidemiológica do Estado de São Paulo expedido em 29/01/2018 reportou 165 casos e 60 óbitos nos anos de 2017 e 2018. Dos casos, 77 (com 23 óbitos) somente no município de Mairiporã. É um cenário assustador, e por essa razão uma extensa campanha de vacinação está em andamento. Muito tem se falado – nem sempre de forma clara - sobre a vacina “fracionada”. Em termos simples, há vários anos se acumula evidência de que doses da vacina bem menores que a habitual determinam proteção semelhante(6) Um estudo da FiOCruz demonstrou que essa proteção dura “pelo menos” oito anos. Devemos entender esse “pelo menos”: o efeito é provavelmente mais duradouro, mas o estudo acompanhou pessoas vacinadas por oito anos, de forma que esse é o período para o qual há evidência. Há a possibilidade teórica (mas ainda não comprovada) de que a dose fracionada determine menor frequência de eventos adversos.


Estes são os desafios e paradoxos da Febre Amarela: uma doença de alta letalidade, mas ainda restrita ao ciclo silvestre; um risco de urbanização incerto, porém consistente em municípios infestados pelo Ae. aegypti; uma vacina de alta eficácia, nem sempre segura. Qualquer decisão no âmbito da saúde pública tem que levar em conta essas complexas variáveis.


Vivemos um momento de expansão da área de risco, e uma ampla discussão sobre estratégias de vacinação (incluir no calendário infantil para todo o país? realizar campanhas mais abrangentes no Sul e Sudeste?). Em situações de “emergência epidemiológica”, vale combinar a postura sóbria e reflexiva com atuação efetiva e oportuna. E todos os envolvidos – inclusive os hospitais e médicos infectologistas – precisam se engajar não só no atendimento, mas também no esclarecimento da população.




Carlos Magno Castelo Branco Fortaleza é médico infectologista, Professor Adjunto - Departamento de Doenças Tropicais Faculdade de Medicina de Botucatu - Unesp e membro da diretoria da Sociedade Paulista de Infectologia. 
 
 
Referências:

  1. Vasconcelos PF. Febre Amarela. Rev Soc Bras Med Trop 2003; 36:275-93.
  2. Romano AP, Costa ZG, Ramos DG, Andrade MA, Jayme Vde S, Almeida MA, Vettorello KC, Mascheretti M, Flannery B. Yellow Fever outbreaks in unvaccinated populations, Brazil, 2008-2009.PLoSNegl Trop Dis. 2014;8:e2740.
  3. Mascheretti M, Tengan CH, Sato HK, Suzuki A, de Souza RP, Maeda M, Brasil R, Pereira M, Tubaki RM, Wanderley DM, Fortaleza CM, Ribeiro AF; Grupo de Febre Amarela.Yellow fever: reemerging in the state of Sao Paulo, Brazil, 2009.Rev SaudePublica. 2013;47:881-9.
  4. Almeida MA, Cardoso Jda C, Dos Santos E, da Fonseca DF, Cruz LL, Faraco FJ, Bercini MA, Vettorello KC, Porto MA, Mohrdieck R, Ranieri TM, Schermann MT, Sperb AF, Paz FZ, Nunes ZM, Romano AP, Costa ZG, Gomes SL, Flannery B.Surveillance for yellow Fever virus in non-human primates in southern Brazil, 2001-2011: a tool for prioritizing human populations for vaccination.PLoSNegl Trop Dis. 2014;8:e2741.
  5. de Menezes Martins R1, Fernandes Leal Mda L, Homma A. Serious adverse events associated with yellow fever vaccine. Hum VaccinImmunother. 2015;11:2183-7.
  6. World Health Organization. WHO position on the use of fractional doses - June 2017, addendum to vaccines and vaccination against yellow fever WHO: Position paper - June 2013.Vaccine. 2017;35:5751-2.





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